Qual é a sua?

sexta-feira, dezembro 31, 2010

A última do ano

Quando pequeno, a última colher de comida nunca era a última. Percebe-se que era no máximo a antepenúltima. A última colher não existe. Uma forma de convencer a criança a mastigar a contragosto. Uma forma de persuadir que é o fim para chegar ao fim. É uma das primeiras mentiras involuntárias dos pais, decorrente da generosidade de ajudar. A última colher deveria significar que é "para valer", mas identifica-se em seguida que não vale nada e a papinha continua insistindo em entrar. A partir desse momento, o último passa a criar o gosto de não ser o último. Entende-se o último como algo que não acontecerá. O último - na verdade - é um começo disfarçado. O último amor. Não há como declarar taxativamente o último amor, porque o desejo admira a incoerência, a contradição, o ciúme. Como já ouvi gente, depois de uma desastrada separação, afirmando que não amaria mais e está hoje no terceiro casamento. Talvez tenha sido último amor naquele dia. Não se termina nada: amizade, livro, filme, casamento. Fica inacabado, adormecido, avulso. Temos a incapacidade natural de findar qualquer coisa. Quem pensa que terminou a relação, como se terminar a relação fosse mérito de quem disse primeiro, apenas adiou seu final. Haverá uma gaveta para colocar o que não se concluiu, um armário para esconder o que não serve mais, uma garagem para o imprestável até o momento. Não conheço sucata que não atenda alguma emergência. O último é somente um início mais convicto, em voz alta. De igual modo, um minutinho é uma hora, um momento é uma eternidade. O último cigarro, por exemplo, é a ladainha do anti-social, que avisa os amigos que está parando, faz um carro de som de sua abnegação e não larga o vício. Encontra logo um problema para justificar a retomada. Num bar, a situação é a mesma. A última cerveja não será a última, a saideira se repete tantas vezes como as colheradas na boca da criança. O último é um fundo falso. Os pais replicam ao filho que é a última vez e não é a última vez. Facilmente desistem da despedida. É a última vez que levará o filho ao restaurante. É a última vez que vai à praça. É sempre a última vez e a criança entende que amanhã voltará tudo ao normal. Na hora de escutar o "último" o ideal é pensar "de novo".

domingo, dezembro 26, 2010

Com cópia em papel carbono

Identificaram os seguintes itens na memória de um homem de idade indefinida, morador solitário da Rua do Arvoredo, em letra datilografada numa Olivetti verde, com fita vermelha e preta. Uma por uma das peças e pequenos fósseis foram retirados de suas lembranças. Havia mais de cem pedras obstruindo a vesícula da memória.
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Kichute. Vinil. Creolina. Mimeógrafo. Placar. Corcel II. Carpim. Eslaque. Laquê. Bilboquê. Bambolê. Marcha no guidão. Groselha. Ki-suco. Vendedor de Mirador. Perdidos no espaço. Jeannie é um gênio. Elo Perdido. Terra de Gigantes. Daniel Boom. Figueroa. Túnel do Tempo. Fitipaldi. Pampa Safari. Escaler. 14 Bis. Secos e Molhados. Revista Manchete. Futebol cards. Bolita. Pegador de armazém. Balança de pinos. Sete belos. Funda. Sapato de bico. Boca de sino. Chacrina. Gretchen. Bolinha. Saramandaia. Irmãos Coragem. Bigode. Paulo César Pereio. Mad. Maricas. Dona Flor e seus dois maridos. Pink Floyd. Corneta do Rintintin. Lassie. Bolachas Maria. Guimba. Fralda de pano. Auxílio à lista. Dancin'Days. Discoteca. Meretriz. Sofá-cama. Beliche. Loção pós-barba. Ceasa. Herbie. Fusca. Opala. Ilha do paraíso. Love story. Nescau. Regina Duarte. Cruzeiro. Fiado. Lampião. Minancora. Babados. Mequetrefes. Grega. Abrigo Adidas. Balela. Disco. Caldo de cana. Mandiopã. Coelho Ricochete. Reunião dançante. Hanna & Barbera. Cueca virada. Bolinho de chuva. Pipoca com mel. Cuba libre. Cartilha. Caderno de caligrafia. Globo de espelhos. Supercine. Papel de parede. O céu é o limite. Jota Silvestre. Flavio Cavalcante. Escrava Isaura. Sobrancelhas raspadas. Peruca. Playmobil. Meias de lurex. Cuecão. Drive in. Polaroid. Santinhos. Corner. Pelota. Tiro de canto. Cinto para emagrecer. Pulseiras magnéticas. Magnésio. Cestas de natal. Caloi. Estação férrea. Prostíbulo. Curetagem. Sacristão. Coroinha. Felação. Arena. Venezianas. Vidro fumê. Óculos Ray Ban. Estilingue. Abluções. Chaco. Mercúrio Cromo. Panacéia. Casquinha. Amolador. Sal de frutas. Bolo inglês. Morfina.
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Mesmo lavrado em cartório, o homem precisou de um tradutor para dar sentido ao que recordava. Usava suspensório. Guardava a dentadura de alguém no copo de requeijão. O relógio da parede da cozinha não acompanhava o horário de verão, dando sinais de subversão. Uma cobiçada reprodução da Última Ceia estava fixada com durex no corredor azul. Muitos vocábulos saltavam sublinhados. Ele era um dicionário aleatório. Verbete sem sinônimo e esposa. Reduzido pela rua, se considerava perseguido pela língua, minoria nas palavras cruzadas. Suas fotos não tinham rascunhos. Não deixou herdeiros. As datas apareciam borradas. Costumes foram umedecendo no papel de presente dos cadernos e do fundo das gavetas. Era o que não voltou. Tudo o que escrevia fazia em papel carbono. Ele se dizia consumido.

sexta-feira, dezembro 24, 2010

Cartinha para o Papai Noel

Querido Papai Noel.
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Eu não acredito no senhor e, dadas as circunstâncias dos últimos anos, nem no espírito natalino eu acredito muito, mas como é moda mandar cartinha pro senhor, vou virar subversiva e vou seguir a moda.
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Esse ano foi melhor que o ano passado, fato. Em alguns aspectos. Eu não magoei tanta gente esse ano, mas quem eu magoei me fez querer arrancar meu coração fora e sair por aí o chutando. Mas, em contrapartida, fui uma boa menina. Não voltei pra faculdade, apesar de não estar mais indecisa em relação ao curso, voltei a morar sozinha, comecei uma dieta e estou seguindo-a.
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Eu falei muita coisa que não devia, fui a lugares que não devia e fiz coisas que não devia, mas todo mundo tem o direito de cometer erros, né?! Eu juro que em 2010 só cometi erros novos, não repeti os antigos.
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Por isso, senhor Natalino, eu gostaria muito de ganhar a mega-sena de final de ano. Brinks Noel.
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Eu quero um pouco mais de paciência, que o senhor exorcize a preguiça do meu corpo, que não me deixe sucumbir à gula e à luxúria (essa última pode deixar de lado, se já estiver pedindo demais), e que eu fique só um pouco avarenta, porque eu gastei demais nos últimos tempos.
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É isso, Noel. Eu sei que não vai adiantar merda nenhuma, mas o pedido está feito.
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Beijos!
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quinta-feira, dezembro 23, 2010

Esse verão

O poeta espanhol Góngora escreveu seus sonetos e fábulas sob o inferno implacável de 40º. Sua poesia pode ser comparada à insolação. Profusão de imagens e febre alta da linguagem. "Compassiva erva, encomendada:/ sorva, enrugada se do feno em meio;/ a pera, de que foi cuna dourada/ a ruiva palha e - pálida tutora -/ a nega avara e, larga, de ouro a cora." Entendeste? É muita volta na quadra. Parece que o autor suspende a conclusão de um verso e somente o retoma três anos depois. O calor colabora para o delírio. Difícil se expressar na asfixia, com o pescoço prensado pela luz. Perde-se a vontade de falar. Fica-se inanimado, uma pedra carregando pedras. O vento que passa não alivia o impacto da claridade. Sádico, surge para ofender com seu bafo de bêbado. O suor assume a incidência de álcool. Deixa-se o banho e já estamos prontos para um outro. Sem praia, a estação é um beco sem saída. O tempo custa a passar. A noite queima as pilhas das estrelas. Tudo é esperança de chuva. Minha mãe me telefona todo dia para dizer que a chuva não veio. O calor transforma os sábios em loucos, os equilibrados em histéricos, a fé em resignação. A ardência dos olhos faz a gente andar de boca aberta. Caminha-se numa esteira de idéias fixas. A barba e os pêlos crescem rápido. A pele retorna à adolescência, com brotoejas, manchas e espinhas. As lâmpadas queimam em sincronia. Descobre-se que o ar-condicionado precisa de limpeza. As crianças emagrecem o rosto. Os sons sobem de altura. É a estação em que se define verdadeiramente quantos cães existem no bairro. Conta-se os cachorros para não dormir. O barulho da piscina está no vizinho. Ninguém consegue terminar uma conversa. A respiração se enfraquece em suspiro. Bocejar é uma prática extenuante para se alcançar nesta época. O carro é uma sauna mista. Não adianta fechar a janela. De carona, leva-se a fumaça irritante do sol. Os casais cansam de brigar. A briga fica reservada para as moscas na cozinha e os mosquitos no quarto.

quarta-feira, dezembro 22, 2010

Ao menos uma vez...

Não acredito em quem confia demasiado em si. Quem nunca extravia a conversa, o jeito da vida, o sentido. Quem nunca se duvida antes de rezar. Quem nunca reza para se distanciar. Quem nunca desistiu de procurar termos no dicionário. Quem nunca se endivida antes do salário. Quem nunca perdeu uma amizade por uma palavra a mais, um amor por uma palavra a menos, uma leitura pela falta de insistência. Não perdeu o emprego, não perdeu um parente, não perdeu a paternidade de si mesmo. Não acredito em quem fala dos outros com convicção, com domínio e técnica, com destreza de faca e agulha. Não acredito em quem não se critica, não se perdoa, não volta atrás. Não acredito em que se julga maior do que a própria vida e se submete às comparações para subir a estima. Não acredito em quem não consulta a meteorologia para apenas constatar que não choveu na noite seguinte. Não acredito em quem enxerga a literatura como uma religião, os livros como mais importantes do que os filhos, os autores como deuses inquestionáveis. Não acredito em quem não se encolheu ferido, derrotado, acuado, mínimo. Não acredito em quem não tem fé para atravessar o rio a nado. Não acredito em quem não considera a possibilidade de fracasso. Não acredito em quem não lê os obituários na velhice. Não acredito em quem não revê suas fotos para se espalhar. Não acredito em quem capricha na letra. Não acredito em quem não modifica sua infância ao avançar. Não acredito em quem não esquece a data ao preencher o cheque. Não acredito em quem ultrapassa o sinal fechado sem medo. Não acredito que o submisso no trabalho não é estourado em família e que o estourado no trabalho não é manso em casa. Não acredito em quem não recusa ao menos três frutas antes de escolher. Não acredito nas verdades que não são mastigadas em silêncio, na arrogância que fala com a boca cheia. Não acredito em quem não se sente culpado pelo excesso de trabalho. Não acredito em quem não se sente culpado pelo excesso de família. Não acredito em quem não passa numa praça ensolarada sem querer sentar. Não acredito em quem não vacila, não se desespera, não prensa o pulmão contra a parede de um relógio. Não acredito em quem professa ensinamentos com indiferença. Não acredito em quem mendiga culpados para sua raiva. Não acredito em quem usa chapéus dentro de casa. Não acredito em quem não foi deserdado em algum momento e fez das ruínas seu começo e seu final. Não acredito na literatura que não seja desconfiança. Não acredito que o desejo possa se repetir. Não acredito em quem não tem receio da morte. Não acredito, confesso que não acredito muitas vezes por dia.

sexta-feira, dezembro 17, 2010

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"Wikileaks revela segredos de festas de fim de ano."
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Assustou, hein?!
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segunda-feira, dezembro 06, 2010

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Tenho a impressão que a Simone passa onze meses do ano trancada numa solitária e sai em dezembro cantando música de natal.
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=S
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quarta-feira, novembro 10, 2010

Na fé, eu sou capaz de me dizer, com amorosa humildade, que grande parte das vezes eu não sei o que é melhor para mim. Eu não sei, mas segundo dizem, Deus sabe. Eu não sei, mas minha alma sabe. Então, faço o que me cabe e entrego, mesmo quando, por força do hábito, eu ainda dê uma provocadinha em Deus e lhe diga: “Tomara que as nossas vontades coincidam”. Faço o que me cabe e confio que aquilo que acontecer, seja lá o que for, com certeza será o melhor, mesmo que algumas vezes, de cara, eu não consiga entender.

segunda-feira, outubro 25, 2010

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Há momentos que não posso me visitar, que fico recolhida. Nem triste nem feliz. Uma serenidade capaz de entender o amor se não houvesse uma segunda-feira para dispersá-lo.
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terça-feira, outubro 19, 2010

Voltas na Quadra


Ninguém lê por obrigação. Ninguém vai procurar o que o autor pensa. Toda leitura é feita pela vaidade de se descobrir ou de se aniquilar. Sim, parece estranho, mas muita gente procura nas obras argumentos e pretextos para o seu pessimismo. O que seria da adolescência sem uma frase de Nietzsche para assustar definitivamente os pais? Da mesma forma, há outros leitores que procuram um livro como quem vai ao terapeuta. O terapeuta permanece calado toda consulta, o leitor é que fala. Não difere muito a situação. Não existe livro puro. Sempre que açguém folheia o recinto, já despeja sua vida de imediato. A facilidade também seduz. O livro ideal é aquele que diz tudo no título, a exemplo de "Como atingir o orgasmo em três toques", dispensando maiores compromissos. É mais fácil seguir as instruções de um livro de auto-ajuda com suas dicas maleáveis do que os dez mandamentos (não cobiçar a mulher ou o livro do próximo é praticamente impossível!). Para os esportistas literários, a leitura não é um destino, mas um desejo. Exercita-se os músculos da memória. É como um cooper contra o esquecimento. Três páginas lidas equivalem a uma volta na quadra. Queima-se alguma coisa, não sei se são as calorias. Imaginamos o enredo, os personagens, os versos com nossa cara. Personificamos a trama. Na verdade, o autor não existe, nem precisava existir. Em um poema com o título "Escrito num livro abandonado em viagem", Fernando Pessoa, poeta português dos maiores, se auto-exclui: "Fui, como ervas, e não me arrancaram". Afora toda piedade que emana de tal afirmação, ele tem razão ao comparar o escritor com a discrção das ervas. Planta tão modesta que não serve para ser jogada fora. Fica fazendo fundo na horta, no quintal ou nas beiras e eiras da calçada. Para quem acredita em libertação pela leitura, deve pensar melhor no sentido daquele lugar comum: o livro me prendeu, não conseguia parar. Livro prende, permanecemos seus reféns o resto dos dias. Descobre-se enfim, que a sabedoria não vem da erudição, do conhecimento acumulado, da decoreba e do catálogo telefônico de citações. Sabedoria acontece quando coincidimos o que lemos com o que vivemos.

Aviso de inutilidade pública

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De vez em quando, eu me isolo em algum lugar que não sou eu. Não sei se já sentiram algo parecido. É uma necessidade de não abrir a correspondência, de preservar segredos e confidências, de ficar absolutamente calada, de não se deixar levar pela ânsia de que tudo deve ser esclarecido. Minha mão é trêmula, há a escolta da outra que me ajuda a escrever. Sou ambidestra por falta de opção. É horrível quando se está quieta e a barriga começa a conspirar e procurar briga com o corpo. Isso costuma acontecer especialmente em reuniões. Senta-se de todo jeito na poltrona, mas o ronco parece decidido a chamar atenção. Olha-se para o lado e nunca sabemos ao certo se ele é audível fora do sangue. E a educação não me deixa perguntar. A poesia não mesalva do vexame de viver.
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quarta-feira, outubro 13, 2010

La media vuelta

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Sorriu. Deixou que ele abrisse o vinho. E, quando pôs o velho disco na vitrola, sabia o que fazia. Voltara a caminhar à beira do abismo. Cairia. Mas, dessa vez, conhecia os caminhos de voltar.
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10/10/10

quarta-feira, setembro 15, 2010

Pensamentos Noturnos

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Os melhores pensamentos quase sempre surgem sob as cobertas. Porém, ao acordar, tudo é esquecido.Tentei colocar caderno e caneta ao pé da cama. Não deu certo: a preguiça de estender os braços foi maior que a vontade de escrever. Nas raras vezes em que acordei lembrando de minhas ideias, achei-as tão tolas! Algumas ideias tem valor apenas quando surgem no pensamento. Se não fizermos ao menos um esboço, elas se tornam obsoletas...
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segunda-feira, agosto 23, 2010

De cabeça

Quem aqui já pensou em se jogar de uma ponte?
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Eu já. E de cabeça, pra não ter chances.
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Desisti da ideia depois que resolvi me jogar de cabeça em algo muito mais perigoso: minha vida.
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Me joguei de cabeça em empregos que não deram certo, mas me fizeram aprender muito. Me joguei de cabeça em uma faculdade que eu nem imagino que fim vai ter. Me joguei de cabeça no mar, na piscina e na cerveja. Me joguei de cabeça numa dieta.
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O único lugar que ainda não consegui me jogar de cabeça, foi meu coração. Porque o coração deixa a gente mais machucado do que todo o resto.
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Seguir a razão é muito mais fácil, porque a razão pula da ponte de bungee jump, o coração é todo complicado, cheio de dramas e pula da ponte sem cordinha de proteção e se espatifa no chão.
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Eu vou me machucar? Todo mundo se machuca. Mas, se me der vontade de agora em diante, não vou usar cordinha de proteção, não vou ligar pra força da queda e nem o estado em que o coração vai ficar.
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Vou me jogar de cabeça nos meus sentimentos, porque só vive bem quem sente a vida.
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quarta-feira, agosto 18, 2010

O tempo existe na sua cabeça

Tudo que conhecemos é relação. Através da observação dos relacionamentos que os objetos mantêm entre si, podemos visualizar o tempo, esse elemento físico vaporoso, intocável e transparente. Estudando o espaço, e a maneira como nele os objetos se movimentam, afastando-se, aproximando-se e interagindo uns com os outros, até somos capazes de manipular as horas, como se elas fosse, de fato, algo concreto e palpável. Mas não são as horas que manipulamos, e sim os objetos que a elas relacionamos.
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Quando Einstein disse que "o tempo não existe", na verdade poderia dizer que "o homem criou o tempo".
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Para entender melhor, imagine que você está a cinco quadras de casa. Vai demorar dez minutos até chegar ao portão. A sua noção de tempo vai ficar ainda mais nítida se você contar os passos. Mas a sensação de passagem do tempo nada mais é do que a passagem dos espaços. A cada passo, a paisagem à sua frente se modifica. Se você se concentrar em outra coisa, uma lembrança ou um plano futuro, a paisagem desaparecerá. Será percebida pela sua retina e enviada até o cérebro, mas o cérebro estará ocupado com outra coisa. Estará pensando, por exemplo, onde estava a existência quando você não existia. Estará talvez pensando que Deus não desce mais até nós porque sabe muito bem o que fazemos com as criaturas aladas. E quando você vê, está diante do portão de sua casa, surpreso por ter chegado tão rápido. E você pensa: "Nossa, o tempo passou tão rápido!". Mas o tempo não passou. O que aconteceu foi que você anulou a sua sensação de tempo. O espaço daquelas cinco quadras foi substituído por uma fantasia, um pensamento, uma alegoria, e o tempo desapareceu.
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Desejo. Ainda.

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Enquanto a visão de Fred Waizman tem origem no Tao, existe outra abordagem que valoriza o desejo como libertador, a de W. Reich. Para Reich, a "peste emocional", caracterizada pela irritação frente à sensualidade e a espontaneidade, e que está na origem de todo autoritarismo, é fruto do desejo reprimido. Você distingue dentro de si os desejos "ocos" daqueles imprescindíveis para a sua saúde mental?
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terça-feira, agosto 17, 2010

Ditadura do Desejo

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Fred Waizman argumenta que existe uma busca contemporânea por "algo que quando alcancemos não nos deixe com uma sensação de vazio. Que seja diferente daquela satisfação de comprar o carro desejado, de transar com a pessoa desejada - dematar o inimigo odiado (sim, também é desejo!!). Uma coisa qualquer pra lá do desejo, maior, menos oca e menos fátua que o desejo". Você sente necessidade de algo assim?
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Vícios

Ela apagou o cigarro.

Acendi outro.

Ela apagou o segundo.

Acendi outro.

Ela apagou o pobrezinho.

Acendi o quarto.

Adoraria dizer a ela que preserve meus vícios.

Meu amor, preserva o vício de dançar na frente do espelho, imitar Elis Regina e acender um cigarro depois de um dia daqueles.

Preserva o meu vício de manter defeitinhos pequenos e doces.

Cultiva a péssima mania de ficar brava e chutar o mundo, pedir desculpa encabulada ou chorar sem ninguém ver. Preserva a mania estúpida de querer mudar tudo, o tempo todo - móveis, planos, desejos e tesões.

Permita-me pequenos defeitinhos - costumo ser perfeccionista e exigente a maior parte do tempo.

Deixa-me à vontade.

Vais notar que com o tempo o cigarro apaga!

Aprenda: beijos leves exigem renúncia honesta.
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P.S.: Aos amigos L, S, T e V.

sábado, agosto 07, 2010

Orégano e eu

De pernas pro ar, Luxúria no toca-discos, constato: SOU A PESSOA QUE MAIS COME ORÉGANO NESTE PLANETA.

Estar sozinha traz à tona muitas descobertas: pergunto e exijo resposta das paredes, consumo leite desnatado à beça, na minha geladeira não falta leite, leite, leite, o chão merece pano úmido e não tolero portas abertas.

Um pouco mais profundo?

Ok. Arrumo a cama diariamente - jeito leve de manter a sensação de que tem alguém cuidando de mim.

Fiz amigos, bons amigos, aliás. Lúcio faz os consertos da casa e sempre sugere um casamento urgente - viver sozinho é muito triste, moça, e as noites ficam grandes! 'Seu' Chiquinho, proprietário do imóvel, responsável pelo boa noite e bom dia - diariamente recebidos com um sorriso. Vizinha amigável com seu diálogo climático: Está frio hoje, hein?!

O colchão fica na sala, aberto - dá a sensação de que ali, no cômodo ao lado, quem sabe... esbarre nesse ou naquela.

Danço pelada, canto baixinho, coloco o caderno no chão, compro flores, questiono a porra da administração municipal, instalo o computador, torço a meia branca... Constato: ando emocionalmente masturbada.

Não entra ninguém, não empresto as chaves, não espero companhia - coloco o colchão na sala e me faço visitas constantes. Senta, entra, fica à vontade. Às vezes consigo, noutras tenho a sensação de que jamais serei capaz de preencher um quarto / sala.

Simplesmente, porque tem dias em que não me basto.

Reencontro

Talvez a vida nos tenha
reservado outra chance
pra vivermos o romance
que não passou de ilusão
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Talvez a vida nos tenha
juntado por brincadeira
qual mulher que por capricho
vaidade ou solidão
reúne seus ex-amantes
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Talvez a vida só queira
fazer como já fez antes
dizer que sim quando é não.
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sexta-feira, agosto 06, 2010

Bolus hystericus

O bar estava mergulhado na agitação do happy hour das sextas-feiras. O fim de semana é celebrado com a euforia de quem ganhou carta de alforria: o álcool eleva a voz e solta a gargalhada, libera a sedução e aumenta a expectativa dos programas nos dias de ócio. Dois dias nos quais se aposta tudo para ser feliz. Numa mesa de canto, alheio à turbulência que me envolvia, deixo-me perder, absorto numa cena, silenciosa e discreta, que se passa na penumbra da calçada.
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Um senhor, de uns sessenta anos, grisalho, enfarpelado num terno elegante e sapato lustroso, se agita. Anda de um lado a outro, acende um cigarro após o outro, atirando-o, ainda pela metade, no meio do asfalto, com o impulso do indicador sobre o polegar. Consulta o relógio a cada minuto e digita o celular a cada dez. Na mão esquerda, o botão de rosa vermelho envolto em celofane, empresta-lhe candura e tom patético. Esta é a moldura para a cena de um homem que sofre com o atraso do objeto de seu desejo.
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O bar e sua euforia etílica reduziram-se a um vozerio distante. Tornei-me espectador da angústia daquele homem. Mais: passei a compartilhar suas incertezas, suas dúvidas. Um cúmplice calado e distante - servo da vocação irremissível e anacrônica de ter compaixão pelos infelizes e estender a mão aos perdedores.
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Sou propenso a imaginar - por tédio, dispersão, autismo ou vezo profissional - o que estará além do que vejo, ouço ou mesmo exista. O que terá havido no passado? O que poderá haver no futuro? E se fosse diferente do que é? Os sóbrios só vêem, agem e reagem ao concreto presente que lhes roça a cara. Para esses, o homem é visível, palpável e previsível. Para mim, é um intrincado aranzel de mistérios, inapreensível, indomável, impenetrável.
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Por isso sei que a ansiedade do homem da calçada vem do seu estado apaixonado. Ele se agita como um louco porque a paixão é pura loucura. E o atraso do objeto do seu desejo joga álcool na fogueira do ciúme. As chamas fustigam seu corpo e seu espírito. O que estará acontecendo, ele se pergunta, sem obter qualquer resposta. Fui rejeitado? Mas como, não se apaixonara por mim? Há alguém? No estado em que ele está, é capaz de tudo.
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Mas, afinal, o que é o desejo? De que matéria é feito e que poderes tem para causar tanto tumulto? O desejo é desejo, ora. Desejo é um vazio, desejo é muito mais do que a atração carnal ou a admiração intelectual ou mesmo a divina mistura de ambas. O desejo daquele homem fala de um querer se encontrar com a pessoa por quem se apaixonou justamente neste lugar vazio.
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Ele deve estar se lembrando dos caminhos que suas mãos percorreram naquele corpo, agora distante, na pele suave das curvas e dobras onde suas mãos passearam. Nos segredos que sussurraram ao ouvido um do outro. Vendo-o abandonado no início da noite de sexta-feira, com um ridículo botão de rosa na mão, pensei no quanto de coragem é preciso para entregar-se à montanha russa da paixão. O amor é o que há de essencial, mas exige demais, entranha-se pele adentro, alma adentro, sacode, balança, estremece, não deixa nada no lugar. É uma embriaguez.
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Os sóbrios e objetivos o evitam o quanto podem para que a vida não saia dos eixos, não se perca a rotina produtiva. Os sóbrios e objetivos, controlam seus corações, resignam-se com algumas afinidades. Já a paixão subverte. Não há como combinar o estado de apaixonado com a gravidade dos deveres e a solicitação das obrigações, com telefonemas inoportunos e a urgência das viagens. Há sempre o que providenciar, o que decidir, o que negociar e mais incontáveis necessidades chatas e... desnecessárias.
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O homem da calçada deve ter resistido com todas as forças à paixão. Até não aguentar mais e se render. Uma vez apaixonado, descobriu o absurdo que é resistir ao que há de mais essencial. E agora, lá está ele, sucumbindo ao desespero de sentir a sua paixão rejeitada, abandonada no início da noite de uma sexta-feira, na penumbra de uma calçada, em frente a um bar que estremece de euforia.
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Então, meu coração se inundou de ternura pelas hordas de homens e mulheres apaixonados que esperam seus pares, que também poderão não vir, e deixá-los ao relento com um botão de rosa não mão. Eu, sempre roído pelo constante sentimento do precário, que bebia sozinho em meio àquela euforia, tive pena até da minha alma.
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O homem da calçada atirou a metade do cigarro no asfalto e soltou lentamente a fumaça. Depois aspirou o perfume do botão de rosa. Soltou-o no chão e esmagou-o com o sapato lustroso. Enfiou as duas mãos no bolso, deu meia-volta e afastou-se lento e cabisbaixo. Demorei a achar um nome para o que imaginava que ele estaria sentindo durante aquela caminhada. Até que encontrei no Houaiss. O sentimento de opressão e de frustração, a dor-de-cotovelo, o nó na garganta, que ocorrem nos casos de paixões não correspondidas, de perdas e renúncias ou de outras turbulências de que a vida não nos poupa, denomina-se bolus hystericus. Em tradução lúdica: quando alguém dá o bolo, alguém fica histérico.

Não confio em gente que

Não gosta de cachorro.
Não gosta de criança.
É brigado com todos os ex-namorados.
É amigo de todo mundo.
Sempre diz que tudo está bom.

quinta-feira, agosto 05, 2010

Instinto

Trabalho, supermercado, imobiliária, retrato.


Tem pose certa. Decote pequeno. Calcinha de algodão. Pouco joelho no chão.


Horário controlado. Trânsito. Teatro. Sem filho. Nem contraceptivos.


Cabelo escovado. Tailleur comportado. Música erudita. Literatura russa.


Frase curta. Pouca pontuação. Muito obrigado, volte sempre, seja bem-vindo.


Sobram regras.


Falta instinto.

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A vida é um eterno amanhã

João Ubaldo Ribeiro, em crônica escrita para um jornal alemão e publicada no livro "Um brasileiro em Berlim", explica o conceito de amanhã:
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As traduções são muito mais complexas do que se imagina. Não me refiro a locuções, expressões idiomáticas, palavras de gíria, flexões verbais, declinações e coisas assim. Isto dá para ser resolvido de uma maneira ou de outra, se bem que, muitas vezes, à custa de intenso sofrimento por parte do tradutor. Refiro-me à impossibilidade de encontrar equivalências entre palavras aparentemente sinônimas, unívocas e univalentes. Por exemplo, um alemão que saiba português responderá sem hesitação que a palavra portuguesa "amanhã" quer dizer "morgen". Mas coitado do alemão que vá para o Brasil acreditando que, quando um brasileiro diz "amanhã", está realmente querendo dizer "morgen". Raramente está. "Amanhã" é uma palavra riquíssima e tenho certeza de que, se o Grande Duden fosse brasileiro, pelo menos um volume teria de ser dedicado a ela e outras, que partilham da mesma condição.

"Amanhã" significa, entre outras coisas, "nunca", "talvez", "vou pensar", "vou desaparecer", "procure outro", "não quero", "no próximo ano", "assim que eu precisar", "um dia destes", "vamos mudar de assunto", etc. e, em casos excepcionalíssimos, "amanhã" mesmo. Qualquer estrangeiro que tenha vivido no Brasil sabe que são necessários vários anos de treinamento para distinguir qual o sentido pretendido pelo interlocutor brasileiro, quando ele responde, com a habitual cordialidade nonchalante, que fará tal ou qual coisa amanhã. O caso dos alemães é, seguramente, o mais grave. Não disponho de estatísticas confiáveis, mas tenho certeza de que nove em cada dez alemães que procuram ajuda médica no Brasil o fazem por causa de "amanhãs" casuais que os levam, no mínimo, a um colapso nervoso, para grande espanto de seus amigos brasileiros - esses alemães são uns loucos, é o que qualquer um dirá.

A culpa é um pouco dos alemães, que, vamos admitir, alimentam um número excessivo de certezas sobre esta vida incerta, número quase tão grande como a quantidade exasperante de preposições que freqüentam sua língua (estou estudando "auf" e "au" no momento, e não estou entendendo nada). São o contrário dos brasileiros, a maior parte dos quais não tem a menor idéia do que estará fazendo na próxima meia hora, quanto mais amanhã.

Talvez tudo se reduza a uma questão filosófica sobre a imanência do ser, o devenir, o princípio de identidade e outros assuntos do quais fingimos entender, em coquetéis desagradáveis onde mentimos a respeito de nossas leituras e nossos tempos na Faculdade. No plano prático, contudo, a coisa fica gravíssima. Se o Brasil tivesse fronteiras com a Alemanha, não digo uma guerra, mas algumas escaramuças já teriam eclodido, com toda a certeza - e a Alemanha perderia, notadamente porque o Brasil não compareceria às batalhas nos horários previstos, confundiria terça-feira com sexta-feira, deixaria tudo para amanhã, falsificaria a assinatura oficial no documento de rendição, receberia a Wehrmacht com batucadas nos momento, mais inadequados e estragaria tudo organizando almoços às seis horas da tarde.

Falo por experiência própria. When in Rome do as the Romans do ditado que deve ter uma versão latina muito mais chique, mas, infelizmente, não disponho aqui de meus livros de citações, para dar a impressão aos leitores de que leio Ovídio e Horácio no original. Mas, em inglês ou em latim, acho esse um pensamento de grande sabedoria e procuro segui-lo à risca, na minha atual condição de berlinense, tanto assim que, não fora minha tez trigueira e meu alemão abestalhado, ninguém me distinguiria, fosse por traje ou maneiras, dos outros berlinenses bebericando uma cervejinha ali na Adenauerplatz.

Fica tudo, porém, muito difícil em certas ocasiões, como hoje mesmo. O telefone tocou, atendi, falou um alemão simpático e cerimonioso do outro lado, querendo saber se eu estaria livre para uma palestra no dia 16 de novembro, quarta-feira, às 20:30h. Sei que é difícil para um alemão compreender que esse tipo de pergunta é ininteligível para um brasileiro. Como alguém pode marcar alguma coisa com tanta precisão e antecedência, esses alemães são uns loucos. Mas não quis ser indelicado e, como sempre, recorri a minha mulher.

- Mulher - disse eu, depois de pedir que o telefonador esperasse um bocadinho. - Eu tenho algum compromisso para o dia 16 de novembro, quarta-feira, às 20:30h?

- Você está maluco? - disse ela. - Quem é que pode responder a esse tipo de pergunta?

- Eu sei, mas tem um alemão aqui querendo uma resposta.

- Diga a ele que você responde amanhã.

- E quando ele telefonar amanha? Ele é alemão, ele vai telefonar amanhã, ele não sabe o que quer dizer amanhã.

- Ah, esses alemães são uns loucos. Você é escritor, invente uma resposta poética, diz a ele que a vida é um eterno amanhã.

Achei uma idéia interessante, mas não a usei, apenas disse que ele telefonasse amanhã. Mas claro que não sei o que dizer amanhã e fui dormir preocupado, tanto assim que ainda incomodei minha mulher com uma cotovelada. Afinal, os alemães são organizados, é uma vergonha a gente não poder planejar as coisas tão bem quanto eles. Que é que eu faço?

- Ora - respondeu ela, retribuindo já cotovelada -, pergunte a ele se os alemães planejaram a reunificação para agora. E, se ele for berlinense, pergunte se ele não preferia deixá-la para amanhã.

- Touché - disse eu, puxando o cobertor para cobrir a cabeça e resolvendo que amanhã pensaria no assunto.

(Um brasileiro em Berlim, 1993.)

terça-feira, agosto 03, 2010

Vestida de Mistério

De mim sei quase nada. Um pedaço de estrela cadente. Vivo em vertigens. Às vezes me assusto.
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Houve um dia em que falei pra Maria: eu te entrego meu coração. Ela fechou as pestanas para baixo, roseou as faces e cruzou as mãos no regaço, quase tímida. Fez um silêncio abissal. Senti um tremor na ponta da alma. Fiquei assim, molhado de aflição, até que ela ergueu o rosto e abriu os olhos repletos de noite estrelada: seu coração pertence só a mim, disse com voz de formigas segredando rotas. Mas eu não aceito o que me pertence enquanto você não vier inteiro.
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Senti uma pontada de agulhas nas costuras do espírito. Agasalhado pela confusão, dei um passo para dentro de mim, em busca do meu verdadeiro eu. Vi muitos cacos no caminho. Pelo avesso sou um quebra-cabeças disperso, sem uma peça encaixada na outra. Só por fora tenho essa aparência de inteireza.
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Perguntei a Maria, agarrado no toco do desespero, morrendo de medo dela esculpir uma verdade verduga: o que te faz assim desconfiada? Ela flamejou os olhos, ergueu o braço e cravou o dedo em minha consciência: seu ciúme! Homem que prende a mulher na fortaleza de cuidados excessivos e desnecessários, e põe vigias a desfilar pelas muradas, armados de pontiagudas desconfianças, não é nem senhor de si, nem senhor de mim. É vento sem direção. Borrifa mágoa por todos os poros. Oferece o coração e fuzila com os olhos, como se os sentimentos, absorvidos pelo vácuo, entrassem em ebulição, soltando a língua maledicente no pasto das inseguranças. Recolha as trevas de suas dúvidas e arme-se com o escudo da fé. Então, descobrirá a confiança e a fidelidade, que brotam do mesmo ramo.
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As palavras de Maria deram um nó em meu coração. Doeu uma dor surda, funda, aquela dor que não é ferimento, mas de quem não suporta a própria nudez entre quatro paredes. Foi então que descobri que os laços que me prendiam à Maria, eram, aos olhos dela, fortes amarras. Julgava que ela me pertencia tanto quanto o cavalo branco que, em noite de lua cheia, galopa no rumo do cume da montanha, à espera de que a lança se solte das mãos de São Jorge.
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Desde aquele dia, deixei de encarar as alianças como algemas. Entrecruzadas revelaram-se símbolos de infinito.
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Agora, já não ofereço o meu coração a Maria. Sei bem que o dela é meu e o meu é dela. Mas ela não sou eu e nem eu sou ela. O que ela é nunca vou saber ao todo, pois todas as vezes que os meus olhos se abrem em núpcias, Maria se apresenta vestida de mistério.
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Renúncia

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Que cada um
Sonhe nas horas vagas
Com coisas que estão muito além
da linha do horizonte
que deseje erguer a ponte
que pode levar o que vem
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E depois, que se conforme
dê desculpas pra ficar
finja ter felicidade
e se abrace à saudade
do que não quis ir buscar
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Metamorfose Ambulante

A relativização dos meus dogmas acontece diariamente. A inconstância é a única regra. As mudanças são perceptíveis a cada novo raiar de sol. Por isto, nunca me conhecerei, porque no momento em que me conhecer já serei outro eu. E esta infinitude de individualidades é a razão de todo o meu sofrimento e alegrias, porque o exterior é sempre o mesmo, mas os meus olhos mudam.

terça-feira, julho 27, 2010



Religião
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olhar para o alto,
tão alto que se tenha
um torcicolo eterno
e nunca mais se possa
olhar direto para o próximo.
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quinta-feira, julho 22, 2010

Aos amigos, os que eu morro de saudades

A base para qualquer relacionamento é confiança.

É bom ter alguém com quem você possa se abrir, alguém que não precisa de nenhum tipo de compromisso com você além de amizade.

Confiança é premissa nas amizades.

Ter amigos é uma dádiva. Ter pessoas que te ligam só pra saber se você está bem, pessoas que te chamam pra uma cerveja quando percebem (em duas palavras no MSN) que você não está legal, pessoas que até dão risada das suas piadas, por piores que elas sejam.

Existem os amigos virtuais, aqueles que você descarrega o mundo quando chega em casa bêbado no sábado à noite… Existem os amigos relapsos (eu me encaixo nesses) que por mais que não estejam constantemente presentes, são aqueles que você pode ligar pra pedir ajuda que eles movem o mundo só pra te ver feliz.

Eu sou uma pessoa muito feliz porque, por mais que não sejamos grudados, sempre que eu sento com qualquer um dos meus amigos, temos as melhores piores conversas do mundo… E cãimbra na mandíbula (se é que isso existe) só eles tem o poder de me dar. Eu mato e morro por eles.

Amo vocês!

domingo, julho 18, 2010

Sedução

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Estava escutando os versos de Itamar (Assumpção): "pensei em seduzir você, domesticando elefantes..."
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Fiquei pensando no ato de seduzir. A palavra é pesada para alguns, mas o sentido maior é encantar, convencer, provocar admiração, sensualizar.
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Cheguei à conclusão que seduzir é o oposto de impor. Não existe outra forma, em uma relação ou discussão, para mudar a posição de alguém: ou força ou sedução. Seduzir, então, é usar nossos recursos - retórica, argumentos, charme, criatividade, emoção - para fazer ver o que não está evidente de cara. Mesmo em temas ditos racionais, é a capacidade de surpreender, de ser enfático, que encerra realmente a discussão. Não há mudança de opinião que não passe pela emoção das pessoas.
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Seduzir é isso. Uma evolução antropológica, em que o mais forte não é mais o que tem o porrete maior, e sim aquele que toca mais fundo à imaginação e ao coração.
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quarta-feira, julho 14, 2010

Beauty Full

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Pra mim, Cortázar, algumas manhãs e algumas luas. Certas músicas associadas a certos momentos. Estar só e em paz. A risada de Melissa. O olhar de travessura de Khal-El. A sintonia das amizades. O amor de algumas pessoas pelo seu trabalho, a curiosidade. Tempo para jogar conversa fora.
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E pra você, o que é realmente lindo?
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segunda-feira, julho 12, 2010

Melancolia

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Inércia, taquicardia de chuva, noite de calor. Falta do que fazer, desinteresse pelo que se faz. Dúvida do que se quer, certeza de não querer o que se tem. Temor pelo que está por vir, medo de que nada aconteça. Meio de um filme ruim, final de um filme bom. Falta de assunto no elevador, conversa interminável ao telefone. Sono que não vem, despertador que toca às seis da manhã.
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Silêncio quando se está sozinho, barulho quando se quer ficar só. Medo de escuro, claridade que incomoda. Ônibus que demora a passar, viagem cansativa. Rua sem saída, sinal vermelho. Abstinência sexual, sexo com um estranho. Telefone que não toca, ligações de engano. Ninguém para conversar, visitas inconvenientes. Papel em branco, lápis sem ponta. Planos para o futuro, lembranças do passado. Paixão não correspondida, amor de quem não interessa. Saudade de quem está longe, ausência de quem está perto.
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sábado, julho 10, 2010

Falados, os segredos calam

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Incrível o poder de síntese dessa frase.
.Encontrei-a em meio aos versos de uma música da Marisa Monte. Imediatamente lembrei-me de outro verso, este de Milton Nascimento - "coisas que ficaram muito tempo por dizer / , nas canções do vento não se cansam de voar".
.Fiquei pensando no destino dos segredos não falados, eles não morrem, ficam rondando feito almas penadas, nunca se calam, não se resolvem.. Falta-lhes a claridade e o ar para serem consumidos e transformados no melhor nutriente das relações.
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terça-feira, julho 06, 2010

O Coquetel dos Gênios

E então, no meio daquele coquetel de inauguração de qualquer coisa, entre uma mulher que conta a novela e um homem que cita Peter Drucker*, fazendo o opossível para não ser visto pela grande senhora que há pouco o ameaçou com uma nova teoria de comunicação que traz escondida entre os seios, você procura alívio numa bandeja que passa. Confortai-me com canapés que desfaleço de banalidades.
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E pensar que aquela mesma espécie já dera tantos gênios. Compositores, pintores, escritores, pensadores... Se fosse possível reuní-los todos num imenso coquetel... que vitalidade! que brilho! principalmente, que conversa!
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Imaginemos que aqueles dois ali, em vez de serem um empresário notoriamente analfabeto e um político que fala português de anedota, fossem, digamos, Beethoven e Vincent van Gogh. Aproximemo-nos para ouvir o que dizem os gênios.
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Van Gogh aponta para um dos seus ouvidos.
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- Fala neste aqui que com o outro eu não escuto.
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E Beethoven:
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- Hein?
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- Fala no outro ouvido. Desse lado eu não escuto nada.
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- O quê?
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- Hein?
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- Como?
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- O outro ouvido! O outro ouvido!
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Está bem, não é um bom exemplo. O Picasso chegaria de bermudas, beliscando as mulheres. Também não serve. De repente bateriam à porta, o mordomo iria abrir e não veria ninguém. Fecharia a porta, intrigado, ouviria batidas outra vez, abriria de novo e então ouviria uma voz vindo de baixo:
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- Sou eu, seu filho de um cão sarnento com uma faxineira de Antuérpia!
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É Toulouse-Lautree, mal-humorado. Mais tarde Willian Faulkner, a caminho do seu décimo "bourbon", tropeçará nele e cairá ao comprido no tapete, aos pés de Oscar Wilde, que, girando seu absinto no copo, dirá:
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- Gosto de ter admiradores, mas isso é ridículo.
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- Aposto que eles ensaiaram isso antes - dirá Bernard Shaw para Sócrates, ao seu lado. Este olha com desconfiança para o copo que tem na mão.
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- O que será que estão me dando? - pergunta Sócrates.
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- Se não é scotch é porcaria - sentencia Shaw.
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- A última bebida que me deram era cicuta.
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O rosto de Shaw se ilumina com a deixa.
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- Cicuta, pra mim, é um veneno.
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Shaw sai de grupo em grupo para contar a própria frase, às gargalhadas, mas a repercussão não é boa. Kant e Vitor Hugo se desentenderam por alguma razão, trocaram insultos e o ambiente ficou pesado. E Wagner, martelando no piano com as duas mãos abertas, não está ajudando em nada. Beethoven é o único que não se incomoda. Van Gogh tapa uma orelha. Salvador Dali tapa os olhos para não ouvir.
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Ouve-se um grito de trás de uma porta fechada. A porta se abre e uma mulher seminua sai correndo. Minutos depois, pela mesma porta, aparece, ajeitando a gravata, o Marquês de Sade e explica:
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- Não é o que vocês estão pensando. Nós estávamos tendo uma discussão filosófica na cama e aí surgiu um hindu louco e puxou o lençol.
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Por trás do Marquês aparece Mahatma Ghandi, envolto no lençol e pedindo desculpas:
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- É que derramei Coca-Cola na minha outra roupa e...
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Hemingway, rodeado por simbolistas franceses e segurando o copo como uma granada, argumenta:
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- Eu (obscenidade) no leite do Simbolismo. Eu (obscenidade) no leite das proparoxítonas maricas.
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Aristóteles, que tem um copo de leite na mão, afasta-se prudentemente.
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Não, pensa você, mastigando um quadradinho de pão coberto com uma pasta vagamente marinha. Seria ótimo ouvir os gênios, mas um a um. Não num coquetel. Definitivamente, não num coquetel.
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*Economista austríaco, autor de livros revolucionários, sobre administração e gestão empresarial.

quarta-feira, maio 26, 2010

Nem toda mudança precisa ser ruim...

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Quando os ventos de mudança sopram, umas pessoas levantam barreiras, outras constróem moinhos de vento.
Érico Veríssimo
P.S.: Nota mental surgindo como post.
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