Qual é a sua?

sexta-feira, agosto 06, 2010

Bolus hystericus

O bar estava mergulhado na agitação do happy hour das sextas-feiras. O fim de semana é celebrado com a euforia de quem ganhou carta de alforria: o álcool eleva a voz e solta a gargalhada, libera a sedução e aumenta a expectativa dos programas nos dias de ócio. Dois dias nos quais se aposta tudo para ser feliz. Numa mesa de canto, alheio à turbulência que me envolvia, deixo-me perder, absorto numa cena, silenciosa e discreta, que se passa na penumbra da calçada.
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Um senhor, de uns sessenta anos, grisalho, enfarpelado num terno elegante e sapato lustroso, se agita. Anda de um lado a outro, acende um cigarro após o outro, atirando-o, ainda pela metade, no meio do asfalto, com o impulso do indicador sobre o polegar. Consulta o relógio a cada minuto e digita o celular a cada dez. Na mão esquerda, o botão de rosa vermelho envolto em celofane, empresta-lhe candura e tom patético. Esta é a moldura para a cena de um homem que sofre com o atraso do objeto de seu desejo.
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O bar e sua euforia etílica reduziram-se a um vozerio distante. Tornei-me espectador da angústia daquele homem. Mais: passei a compartilhar suas incertezas, suas dúvidas. Um cúmplice calado e distante - servo da vocação irremissível e anacrônica de ter compaixão pelos infelizes e estender a mão aos perdedores.
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Sou propenso a imaginar - por tédio, dispersão, autismo ou vezo profissional - o que estará além do que vejo, ouço ou mesmo exista. O que terá havido no passado? O que poderá haver no futuro? E se fosse diferente do que é? Os sóbrios só vêem, agem e reagem ao concreto presente que lhes roça a cara. Para esses, o homem é visível, palpável e previsível. Para mim, é um intrincado aranzel de mistérios, inapreensível, indomável, impenetrável.
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Por isso sei que a ansiedade do homem da calçada vem do seu estado apaixonado. Ele se agita como um louco porque a paixão é pura loucura. E o atraso do objeto do seu desejo joga álcool na fogueira do ciúme. As chamas fustigam seu corpo e seu espírito. O que estará acontecendo, ele se pergunta, sem obter qualquer resposta. Fui rejeitado? Mas como, não se apaixonara por mim? Há alguém? No estado em que ele está, é capaz de tudo.
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Mas, afinal, o que é o desejo? De que matéria é feito e que poderes tem para causar tanto tumulto? O desejo é desejo, ora. Desejo é um vazio, desejo é muito mais do que a atração carnal ou a admiração intelectual ou mesmo a divina mistura de ambas. O desejo daquele homem fala de um querer se encontrar com a pessoa por quem se apaixonou justamente neste lugar vazio.
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Ele deve estar se lembrando dos caminhos que suas mãos percorreram naquele corpo, agora distante, na pele suave das curvas e dobras onde suas mãos passearam. Nos segredos que sussurraram ao ouvido um do outro. Vendo-o abandonado no início da noite de sexta-feira, com um ridículo botão de rosa na mão, pensei no quanto de coragem é preciso para entregar-se à montanha russa da paixão. O amor é o que há de essencial, mas exige demais, entranha-se pele adentro, alma adentro, sacode, balança, estremece, não deixa nada no lugar. É uma embriaguez.
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Os sóbrios e objetivos o evitam o quanto podem para que a vida não saia dos eixos, não se perca a rotina produtiva. Os sóbrios e objetivos, controlam seus corações, resignam-se com algumas afinidades. Já a paixão subverte. Não há como combinar o estado de apaixonado com a gravidade dos deveres e a solicitação das obrigações, com telefonemas inoportunos e a urgência das viagens. Há sempre o que providenciar, o que decidir, o que negociar e mais incontáveis necessidades chatas e... desnecessárias.
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O homem da calçada deve ter resistido com todas as forças à paixão. Até não aguentar mais e se render. Uma vez apaixonado, descobriu o absurdo que é resistir ao que há de mais essencial. E agora, lá está ele, sucumbindo ao desespero de sentir a sua paixão rejeitada, abandonada no início da noite de uma sexta-feira, na penumbra de uma calçada, em frente a um bar que estremece de euforia.
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Então, meu coração se inundou de ternura pelas hordas de homens e mulheres apaixonados que esperam seus pares, que também poderão não vir, e deixá-los ao relento com um botão de rosa não mão. Eu, sempre roído pelo constante sentimento do precário, que bebia sozinho em meio àquela euforia, tive pena até da minha alma.
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O homem da calçada atirou a metade do cigarro no asfalto e soltou lentamente a fumaça. Depois aspirou o perfume do botão de rosa. Soltou-o no chão e esmagou-o com o sapato lustroso. Enfiou as duas mãos no bolso, deu meia-volta e afastou-se lento e cabisbaixo. Demorei a achar um nome para o que imaginava que ele estaria sentindo durante aquela caminhada. Até que encontrei no Houaiss. O sentimento de opressão e de frustração, a dor-de-cotovelo, o nó na garganta, que ocorrem nos casos de paixões não correspondidas, de perdas e renúncias ou de outras turbulências de que a vida não nos poupa, denomina-se bolus hystericus. Em tradução lúdica: quando alguém dá o bolo, alguém fica histérico.

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