Qual é a sua?

segunda-feira, agosto 23, 2010

De cabeça

Quem aqui já pensou em se jogar de uma ponte?
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Eu já. E de cabeça, pra não ter chances.
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Desisti da ideia depois que resolvi me jogar de cabeça em algo muito mais perigoso: minha vida.
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Me joguei de cabeça em empregos que não deram certo, mas me fizeram aprender muito. Me joguei de cabeça em uma faculdade que eu nem imagino que fim vai ter. Me joguei de cabeça no mar, na piscina e na cerveja. Me joguei de cabeça numa dieta.
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O único lugar que ainda não consegui me jogar de cabeça, foi meu coração. Porque o coração deixa a gente mais machucado do que todo o resto.
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Seguir a razão é muito mais fácil, porque a razão pula da ponte de bungee jump, o coração é todo complicado, cheio de dramas e pula da ponte sem cordinha de proteção e se espatifa no chão.
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Eu vou me machucar? Todo mundo se machuca. Mas, se me der vontade de agora em diante, não vou usar cordinha de proteção, não vou ligar pra força da queda e nem o estado em que o coração vai ficar.
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Vou me jogar de cabeça nos meus sentimentos, porque só vive bem quem sente a vida.
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quarta-feira, agosto 18, 2010

O tempo existe na sua cabeça

Tudo que conhecemos é relação. Através da observação dos relacionamentos que os objetos mantêm entre si, podemos visualizar o tempo, esse elemento físico vaporoso, intocável e transparente. Estudando o espaço, e a maneira como nele os objetos se movimentam, afastando-se, aproximando-se e interagindo uns com os outros, até somos capazes de manipular as horas, como se elas fosse, de fato, algo concreto e palpável. Mas não são as horas que manipulamos, e sim os objetos que a elas relacionamos.
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Quando Einstein disse que "o tempo não existe", na verdade poderia dizer que "o homem criou o tempo".
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Para entender melhor, imagine que você está a cinco quadras de casa. Vai demorar dez minutos até chegar ao portão. A sua noção de tempo vai ficar ainda mais nítida se você contar os passos. Mas a sensação de passagem do tempo nada mais é do que a passagem dos espaços. A cada passo, a paisagem à sua frente se modifica. Se você se concentrar em outra coisa, uma lembrança ou um plano futuro, a paisagem desaparecerá. Será percebida pela sua retina e enviada até o cérebro, mas o cérebro estará ocupado com outra coisa. Estará pensando, por exemplo, onde estava a existência quando você não existia. Estará talvez pensando que Deus não desce mais até nós porque sabe muito bem o que fazemos com as criaturas aladas. E quando você vê, está diante do portão de sua casa, surpreso por ter chegado tão rápido. E você pensa: "Nossa, o tempo passou tão rápido!". Mas o tempo não passou. O que aconteceu foi que você anulou a sua sensação de tempo. O espaço daquelas cinco quadras foi substituído por uma fantasia, um pensamento, uma alegoria, e o tempo desapareceu.
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Desejo. Ainda.

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Enquanto a visão de Fred Waizman tem origem no Tao, existe outra abordagem que valoriza o desejo como libertador, a de W. Reich. Para Reich, a "peste emocional", caracterizada pela irritação frente à sensualidade e a espontaneidade, e que está na origem de todo autoritarismo, é fruto do desejo reprimido. Você distingue dentro de si os desejos "ocos" daqueles imprescindíveis para a sua saúde mental?
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terça-feira, agosto 17, 2010

Ditadura do Desejo

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Fred Waizman argumenta que existe uma busca contemporânea por "algo que quando alcancemos não nos deixe com uma sensação de vazio. Que seja diferente daquela satisfação de comprar o carro desejado, de transar com a pessoa desejada - dematar o inimigo odiado (sim, também é desejo!!). Uma coisa qualquer pra lá do desejo, maior, menos oca e menos fátua que o desejo". Você sente necessidade de algo assim?
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Vícios

Ela apagou o cigarro.

Acendi outro.

Ela apagou o segundo.

Acendi outro.

Ela apagou o pobrezinho.

Acendi o quarto.

Adoraria dizer a ela que preserve meus vícios.

Meu amor, preserva o vício de dançar na frente do espelho, imitar Elis Regina e acender um cigarro depois de um dia daqueles.

Preserva o meu vício de manter defeitinhos pequenos e doces.

Cultiva a péssima mania de ficar brava e chutar o mundo, pedir desculpa encabulada ou chorar sem ninguém ver. Preserva a mania estúpida de querer mudar tudo, o tempo todo - móveis, planos, desejos e tesões.

Permita-me pequenos defeitinhos - costumo ser perfeccionista e exigente a maior parte do tempo.

Deixa-me à vontade.

Vais notar que com o tempo o cigarro apaga!

Aprenda: beijos leves exigem renúncia honesta.
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P.S.: Aos amigos L, S, T e V.

sábado, agosto 07, 2010

Orégano e eu

De pernas pro ar, Luxúria no toca-discos, constato: SOU A PESSOA QUE MAIS COME ORÉGANO NESTE PLANETA.

Estar sozinha traz à tona muitas descobertas: pergunto e exijo resposta das paredes, consumo leite desnatado à beça, na minha geladeira não falta leite, leite, leite, o chão merece pano úmido e não tolero portas abertas.

Um pouco mais profundo?

Ok. Arrumo a cama diariamente - jeito leve de manter a sensação de que tem alguém cuidando de mim.

Fiz amigos, bons amigos, aliás. Lúcio faz os consertos da casa e sempre sugere um casamento urgente - viver sozinho é muito triste, moça, e as noites ficam grandes! 'Seu' Chiquinho, proprietário do imóvel, responsável pelo boa noite e bom dia - diariamente recebidos com um sorriso. Vizinha amigável com seu diálogo climático: Está frio hoje, hein?!

O colchão fica na sala, aberto - dá a sensação de que ali, no cômodo ao lado, quem sabe... esbarre nesse ou naquela.

Danço pelada, canto baixinho, coloco o caderno no chão, compro flores, questiono a porra da administração municipal, instalo o computador, torço a meia branca... Constato: ando emocionalmente masturbada.

Não entra ninguém, não empresto as chaves, não espero companhia - coloco o colchão na sala e me faço visitas constantes. Senta, entra, fica à vontade. Às vezes consigo, noutras tenho a sensação de que jamais serei capaz de preencher um quarto / sala.

Simplesmente, porque tem dias em que não me basto.

Reencontro

Talvez a vida nos tenha
reservado outra chance
pra vivermos o romance
que não passou de ilusão
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Talvez a vida nos tenha
juntado por brincadeira
qual mulher que por capricho
vaidade ou solidão
reúne seus ex-amantes
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Talvez a vida só queira
fazer como já fez antes
dizer que sim quando é não.
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sexta-feira, agosto 06, 2010

Bolus hystericus

O bar estava mergulhado na agitação do happy hour das sextas-feiras. O fim de semana é celebrado com a euforia de quem ganhou carta de alforria: o álcool eleva a voz e solta a gargalhada, libera a sedução e aumenta a expectativa dos programas nos dias de ócio. Dois dias nos quais se aposta tudo para ser feliz. Numa mesa de canto, alheio à turbulência que me envolvia, deixo-me perder, absorto numa cena, silenciosa e discreta, que se passa na penumbra da calçada.
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Um senhor, de uns sessenta anos, grisalho, enfarpelado num terno elegante e sapato lustroso, se agita. Anda de um lado a outro, acende um cigarro após o outro, atirando-o, ainda pela metade, no meio do asfalto, com o impulso do indicador sobre o polegar. Consulta o relógio a cada minuto e digita o celular a cada dez. Na mão esquerda, o botão de rosa vermelho envolto em celofane, empresta-lhe candura e tom patético. Esta é a moldura para a cena de um homem que sofre com o atraso do objeto de seu desejo.
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O bar e sua euforia etílica reduziram-se a um vozerio distante. Tornei-me espectador da angústia daquele homem. Mais: passei a compartilhar suas incertezas, suas dúvidas. Um cúmplice calado e distante - servo da vocação irremissível e anacrônica de ter compaixão pelos infelizes e estender a mão aos perdedores.
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Sou propenso a imaginar - por tédio, dispersão, autismo ou vezo profissional - o que estará além do que vejo, ouço ou mesmo exista. O que terá havido no passado? O que poderá haver no futuro? E se fosse diferente do que é? Os sóbrios só vêem, agem e reagem ao concreto presente que lhes roça a cara. Para esses, o homem é visível, palpável e previsível. Para mim, é um intrincado aranzel de mistérios, inapreensível, indomável, impenetrável.
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Por isso sei que a ansiedade do homem da calçada vem do seu estado apaixonado. Ele se agita como um louco porque a paixão é pura loucura. E o atraso do objeto do seu desejo joga álcool na fogueira do ciúme. As chamas fustigam seu corpo e seu espírito. O que estará acontecendo, ele se pergunta, sem obter qualquer resposta. Fui rejeitado? Mas como, não se apaixonara por mim? Há alguém? No estado em que ele está, é capaz de tudo.
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Mas, afinal, o que é o desejo? De que matéria é feito e que poderes tem para causar tanto tumulto? O desejo é desejo, ora. Desejo é um vazio, desejo é muito mais do que a atração carnal ou a admiração intelectual ou mesmo a divina mistura de ambas. O desejo daquele homem fala de um querer se encontrar com a pessoa por quem se apaixonou justamente neste lugar vazio.
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Ele deve estar se lembrando dos caminhos que suas mãos percorreram naquele corpo, agora distante, na pele suave das curvas e dobras onde suas mãos passearam. Nos segredos que sussurraram ao ouvido um do outro. Vendo-o abandonado no início da noite de sexta-feira, com um ridículo botão de rosa na mão, pensei no quanto de coragem é preciso para entregar-se à montanha russa da paixão. O amor é o que há de essencial, mas exige demais, entranha-se pele adentro, alma adentro, sacode, balança, estremece, não deixa nada no lugar. É uma embriaguez.
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Os sóbrios e objetivos o evitam o quanto podem para que a vida não saia dos eixos, não se perca a rotina produtiva. Os sóbrios e objetivos, controlam seus corações, resignam-se com algumas afinidades. Já a paixão subverte. Não há como combinar o estado de apaixonado com a gravidade dos deveres e a solicitação das obrigações, com telefonemas inoportunos e a urgência das viagens. Há sempre o que providenciar, o que decidir, o que negociar e mais incontáveis necessidades chatas e... desnecessárias.
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O homem da calçada deve ter resistido com todas as forças à paixão. Até não aguentar mais e se render. Uma vez apaixonado, descobriu o absurdo que é resistir ao que há de mais essencial. E agora, lá está ele, sucumbindo ao desespero de sentir a sua paixão rejeitada, abandonada no início da noite de uma sexta-feira, na penumbra de uma calçada, em frente a um bar que estremece de euforia.
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Então, meu coração se inundou de ternura pelas hordas de homens e mulheres apaixonados que esperam seus pares, que também poderão não vir, e deixá-los ao relento com um botão de rosa não mão. Eu, sempre roído pelo constante sentimento do precário, que bebia sozinho em meio àquela euforia, tive pena até da minha alma.
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O homem da calçada atirou a metade do cigarro no asfalto e soltou lentamente a fumaça. Depois aspirou o perfume do botão de rosa. Soltou-o no chão e esmagou-o com o sapato lustroso. Enfiou as duas mãos no bolso, deu meia-volta e afastou-se lento e cabisbaixo. Demorei a achar um nome para o que imaginava que ele estaria sentindo durante aquela caminhada. Até que encontrei no Houaiss. O sentimento de opressão e de frustração, a dor-de-cotovelo, o nó na garganta, que ocorrem nos casos de paixões não correspondidas, de perdas e renúncias ou de outras turbulências de que a vida não nos poupa, denomina-se bolus hystericus. Em tradução lúdica: quando alguém dá o bolo, alguém fica histérico.

Não confio em gente que

Não gosta de cachorro.
Não gosta de criança.
É brigado com todos os ex-namorados.
É amigo de todo mundo.
Sempre diz que tudo está bom.

quinta-feira, agosto 05, 2010

Instinto

Trabalho, supermercado, imobiliária, retrato.


Tem pose certa. Decote pequeno. Calcinha de algodão. Pouco joelho no chão.


Horário controlado. Trânsito. Teatro. Sem filho. Nem contraceptivos.


Cabelo escovado. Tailleur comportado. Música erudita. Literatura russa.


Frase curta. Pouca pontuação. Muito obrigado, volte sempre, seja bem-vindo.


Sobram regras.


Falta instinto.

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A vida é um eterno amanhã

João Ubaldo Ribeiro, em crônica escrita para um jornal alemão e publicada no livro "Um brasileiro em Berlim", explica o conceito de amanhã:
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As traduções são muito mais complexas do que se imagina. Não me refiro a locuções, expressões idiomáticas, palavras de gíria, flexões verbais, declinações e coisas assim. Isto dá para ser resolvido de uma maneira ou de outra, se bem que, muitas vezes, à custa de intenso sofrimento por parte do tradutor. Refiro-me à impossibilidade de encontrar equivalências entre palavras aparentemente sinônimas, unívocas e univalentes. Por exemplo, um alemão que saiba português responderá sem hesitação que a palavra portuguesa "amanhã" quer dizer "morgen". Mas coitado do alemão que vá para o Brasil acreditando que, quando um brasileiro diz "amanhã", está realmente querendo dizer "morgen". Raramente está. "Amanhã" é uma palavra riquíssima e tenho certeza de que, se o Grande Duden fosse brasileiro, pelo menos um volume teria de ser dedicado a ela e outras, que partilham da mesma condição.

"Amanhã" significa, entre outras coisas, "nunca", "talvez", "vou pensar", "vou desaparecer", "procure outro", "não quero", "no próximo ano", "assim que eu precisar", "um dia destes", "vamos mudar de assunto", etc. e, em casos excepcionalíssimos, "amanhã" mesmo. Qualquer estrangeiro que tenha vivido no Brasil sabe que são necessários vários anos de treinamento para distinguir qual o sentido pretendido pelo interlocutor brasileiro, quando ele responde, com a habitual cordialidade nonchalante, que fará tal ou qual coisa amanhã. O caso dos alemães é, seguramente, o mais grave. Não disponho de estatísticas confiáveis, mas tenho certeza de que nove em cada dez alemães que procuram ajuda médica no Brasil o fazem por causa de "amanhãs" casuais que os levam, no mínimo, a um colapso nervoso, para grande espanto de seus amigos brasileiros - esses alemães são uns loucos, é o que qualquer um dirá.

A culpa é um pouco dos alemães, que, vamos admitir, alimentam um número excessivo de certezas sobre esta vida incerta, número quase tão grande como a quantidade exasperante de preposições que freqüentam sua língua (estou estudando "auf" e "au" no momento, e não estou entendendo nada). São o contrário dos brasileiros, a maior parte dos quais não tem a menor idéia do que estará fazendo na próxima meia hora, quanto mais amanhã.

Talvez tudo se reduza a uma questão filosófica sobre a imanência do ser, o devenir, o princípio de identidade e outros assuntos do quais fingimos entender, em coquetéis desagradáveis onde mentimos a respeito de nossas leituras e nossos tempos na Faculdade. No plano prático, contudo, a coisa fica gravíssima. Se o Brasil tivesse fronteiras com a Alemanha, não digo uma guerra, mas algumas escaramuças já teriam eclodido, com toda a certeza - e a Alemanha perderia, notadamente porque o Brasil não compareceria às batalhas nos horários previstos, confundiria terça-feira com sexta-feira, deixaria tudo para amanhã, falsificaria a assinatura oficial no documento de rendição, receberia a Wehrmacht com batucadas nos momento, mais inadequados e estragaria tudo organizando almoços às seis horas da tarde.

Falo por experiência própria. When in Rome do as the Romans do ditado que deve ter uma versão latina muito mais chique, mas, infelizmente, não disponho aqui de meus livros de citações, para dar a impressão aos leitores de que leio Ovídio e Horácio no original. Mas, em inglês ou em latim, acho esse um pensamento de grande sabedoria e procuro segui-lo à risca, na minha atual condição de berlinense, tanto assim que, não fora minha tez trigueira e meu alemão abestalhado, ninguém me distinguiria, fosse por traje ou maneiras, dos outros berlinenses bebericando uma cervejinha ali na Adenauerplatz.

Fica tudo, porém, muito difícil em certas ocasiões, como hoje mesmo. O telefone tocou, atendi, falou um alemão simpático e cerimonioso do outro lado, querendo saber se eu estaria livre para uma palestra no dia 16 de novembro, quarta-feira, às 20:30h. Sei que é difícil para um alemão compreender que esse tipo de pergunta é ininteligível para um brasileiro. Como alguém pode marcar alguma coisa com tanta precisão e antecedência, esses alemães são uns loucos. Mas não quis ser indelicado e, como sempre, recorri a minha mulher.

- Mulher - disse eu, depois de pedir que o telefonador esperasse um bocadinho. - Eu tenho algum compromisso para o dia 16 de novembro, quarta-feira, às 20:30h?

- Você está maluco? - disse ela. - Quem é que pode responder a esse tipo de pergunta?

- Eu sei, mas tem um alemão aqui querendo uma resposta.

- Diga a ele que você responde amanhã.

- E quando ele telefonar amanha? Ele é alemão, ele vai telefonar amanhã, ele não sabe o que quer dizer amanhã.

- Ah, esses alemães são uns loucos. Você é escritor, invente uma resposta poética, diz a ele que a vida é um eterno amanhã.

Achei uma idéia interessante, mas não a usei, apenas disse que ele telefonasse amanhã. Mas claro que não sei o que dizer amanhã e fui dormir preocupado, tanto assim que ainda incomodei minha mulher com uma cotovelada. Afinal, os alemães são organizados, é uma vergonha a gente não poder planejar as coisas tão bem quanto eles. Que é que eu faço?

- Ora - respondeu ela, retribuindo já cotovelada -, pergunte a ele se os alemães planejaram a reunificação para agora. E, se ele for berlinense, pergunte se ele não preferia deixá-la para amanhã.

- Touché - disse eu, puxando o cobertor para cobrir a cabeça e resolvendo que amanhã pensaria no assunto.

(Um brasileiro em Berlim, 1993.)

terça-feira, agosto 03, 2010

Vestida de Mistério

De mim sei quase nada. Um pedaço de estrela cadente. Vivo em vertigens. Às vezes me assusto.
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Houve um dia em que falei pra Maria: eu te entrego meu coração. Ela fechou as pestanas para baixo, roseou as faces e cruzou as mãos no regaço, quase tímida. Fez um silêncio abissal. Senti um tremor na ponta da alma. Fiquei assim, molhado de aflição, até que ela ergueu o rosto e abriu os olhos repletos de noite estrelada: seu coração pertence só a mim, disse com voz de formigas segredando rotas. Mas eu não aceito o que me pertence enquanto você não vier inteiro.
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Senti uma pontada de agulhas nas costuras do espírito. Agasalhado pela confusão, dei um passo para dentro de mim, em busca do meu verdadeiro eu. Vi muitos cacos no caminho. Pelo avesso sou um quebra-cabeças disperso, sem uma peça encaixada na outra. Só por fora tenho essa aparência de inteireza.
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Perguntei a Maria, agarrado no toco do desespero, morrendo de medo dela esculpir uma verdade verduga: o que te faz assim desconfiada? Ela flamejou os olhos, ergueu o braço e cravou o dedo em minha consciência: seu ciúme! Homem que prende a mulher na fortaleza de cuidados excessivos e desnecessários, e põe vigias a desfilar pelas muradas, armados de pontiagudas desconfianças, não é nem senhor de si, nem senhor de mim. É vento sem direção. Borrifa mágoa por todos os poros. Oferece o coração e fuzila com os olhos, como se os sentimentos, absorvidos pelo vácuo, entrassem em ebulição, soltando a língua maledicente no pasto das inseguranças. Recolha as trevas de suas dúvidas e arme-se com o escudo da fé. Então, descobrirá a confiança e a fidelidade, que brotam do mesmo ramo.
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As palavras de Maria deram um nó em meu coração. Doeu uma dor surda, funda, aquela dor que não é ferimento, mas de quem não suporta a própria nudez entre quatro paredes. Foi então que descobri que os laços que me prendiam à Maria, eram, aos olhos dela, fortes amarras. Julgava que ela me pertencia tanto quanto o cavalo branco que, em noite de lua cheia, galopa no rumo do cume da montanha, à espera de que a lança se solte das mãos de São Jorge.
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Desde aquele dia, deixei de encarar as alianças como algemas. Entrecruzadas revelaram-se símbolos de infinito.
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Agora, já não ofereço o meu coração a Maria. Sei bem que o dela é meu e o meu é dela. Mas ela não sou eu e nem eu sou ela. O que ela é nunca vou saber ao todo, pois todas as vezes que os meus olhos se abrem em núpcias, Maria se apresenta vestida de mistério.
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Renúncia

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Que cada um
Sonhe nas horas vagas
Com coisas que estão muito além
da linha do horizonte
que deseje erguer a ponte
que pode levar o que vem
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E depois, que se conforme
dê desculpas pra ficar
finja ter felicidade
e se abrace à saudade
do que não quis ir buscar
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Metamorfose Ambulante

A relativização dos meus dogmas acontece diariamente. A inconstância é a única regra. As mudanças são perceptíveis a cada novo raiar de sol. Por isto, nunca me conhecerei, porque no momento em que me conhecer já serei outro eu. E esta infinitude de individualidades é a razão de todo o meu sofrimento e alegrias, porque o exterior é sempre o mesmo, mas os meus olhos mudam.

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