Qual é a sua?

sábado, abril 26, 2008

Relato Sobre a Obrigação de Ser Feliz

Tinha uma praça que vocês podem imaginar à vontade, numa cidade como a nossa.
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Tinha um casal de velhos sentado no banco da praça.
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Tinha um cronista sem assunto, olhando o casal de velhos pelo binóculo, na janela de um prédio, debruçado sobre a praça.
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Tinha uma vontade de ser feliz no ar da tarde.
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Pois era uma tarde de sexta-feira. Não sei se vocês já sentiram, a obrigação de ser feliz que vem embrulhada nas tardes de sexta-feira. É como uma imposição: quem não for estupidamente feliz, entre num bar e beba um vermute com amendoim e se embriague como nos doces tempos de outrora. Mas acontece que o cronista estava só no apartamento. um homem só não pode ser feliz. De maneira que o cronista sem assunto fixou bem o binóculo no casal de velhos e ficou olhando.
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Informo, a quem interessar possa, que o cronista tem o vício de ficar olhando o mundo através do binóculo. Aconteceu uma vez que ele descobriu uma moça trsite na janela de um prédio vizinho ao seu, quando morava em Lourdes. Toda noite, ficava olhando certa moça. Fazia poemas para alegrar a moça. A qual, diga-se em nome da verdade, nunca tomou conhecimento dos versos do rapaz. Uma noite, o cronista reuniu os amigos seresteiros e decidiu cantar debaixo da janela da moça triste.
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Pobre cronista: enquanto seu amigo dedilhava o violão, ele cantava com uma voz tão terrível que acordou patos, morcegos, gatinhas e perus, nos quintais da vizinhança, numa época que ainda havia casas e quintais em nossa amada cidade e galos cantando. Nosso seresteiro cantava evocando a lua e a madrugada quando, lá do alto do prédio, começou a cair toda sorte de coisas, misturadas aos palavrões. Até que caiu, num frasco de plástico, alguma coisa quente e adocicada exatamente da janela da moça a quem oferecia a seresta.
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Como é inocente a alma dos apaixonados. O seresteiro improvisado, depois que juntamente com o amigo teve que fugir e pedir asilo debaixo de uma providencial marquise, onde mendigos dormiam o sono dos justos, jurava que o líquido morno era um licor espanhol. Encurtando conversa: depois do sucedido, a moça triste surgiu na janela vestida de noiva. Sabe-se que casou com um primo e foi infeliz para sempre, se é que isso não é intriga da oposição.
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Mas a vida e esta crônica tem que continuar. Por isso, convém voltar à cena inicial: um cronista sem assunto observa pelo binóculo um casal de velhos sentados no banco da praça. O velho usa terno e gravata. Tem os cabelos brancos e os olhos são claros e ele segura as mãos da velha senhora. Que, por sua vez, também tem cabelos brancos. Falta dizer que havia um jardim na praça. E, de repente, o velho deixou o banco, andou alguns passos, apanhou uma rosa vermelha no jardim e entregou-a à mulher.
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Ah, vocês precisavam ver a alegria da velha senhora. Ela recebeu a rosa vermelha e beijou-a. Lá de sua janela, o cronista sem assunto, olhando pelo binóculo, sentiu uma alegria jamais sentida. E teve certeza de que, por mais que a guerra e a violência, em todo mundo, apontem suas armas da morte, numa praça de Belo horizonte, que é apenas um pequeno ponto negro no mapa da América do Sul, uma rosa exercia um poder maior. E o cronista sentiu vontade de escrever um manifesto conclamando os senhores da guerra a cederem ao encanto de uma flor. Mas pensou que o tempo das flores, que era o tempo dos hippies, tinha passado.
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Guardou o binóculo, desceu no elevador, foi ao bar da esquina e pediu um vermute com amendoim.

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